“Ao mestre, com carinho”: jornalista Lúcio Flávio Pinto se despede do jornalismo diário
Belém, 13 de julho de 2023 – Quando eu decidi parar com a “vagabundagem”, depois de 10 anos sem estudar, e encarar de frente a profissão na qual eu já estava atuando, como jornalista, e fazer vestibular, já sabia que teria, caso passasse para o curso de Jornalismo, na UFPA, aulas com Lucio Flávio Pinto. Passei e esperei dois anos pelas aulas com quem foi, pra mim, um verdadeiro mestre.
Nós tínhamos aulas com Lucio – nas disciplinas Ética e História da Imprensa – das 16 às 20 horas, sendo que as duas disciplinas se misturavam nos assuntos. E eu, da minha parte, foram quatro horas, às segundas e quartas-feiras, com um pequeno intervalo, que muitas boas lembranças me trazem.
Ver a chegada de Lucio, sempre impecável, vestido de modo formal, com uma pasta na mão, rompendo o calor senegalesco, às 15h55, nas salas sem ar condicionado do bloco F, campus básico da UFPA, é muito presente pra mim. Isso sem falar do “famoso” Passat, de um azul que não imagino de qual paleta.
Às vezes, o Passat deixava Lucio “na mão”. E nesses momentos, era comum estar com o mestre no mesmo “busão” UFPA-Presidente Vargas. Era o momento de conversar com Lucio sobre muitos assuntos, rompendo a quarta parede “professor-aluno”. Tenho ótimas lembranças dessas conversas.
Depois de formada, consegui manter um contato, mesmo que mínimo com ele. Algumas vezes, nos encontrávamos em algum evento em Belém. E a conversa sempre era das melhores. Mais tarde, as conversas passaram a ser por e-mail. Lucio sempre foi/ é de uma gentileza ímpar comigo. No que que deixo aqui minha gratidão.
Parada – No último sábado, dia 8, Lucio publicou que, devido ao diagnóstico de Mal de Parkinson, que agora começa a afetar a cognição dele, vai deixar o jornalismo diário.
A convite do site Jornalista & Cia, fiz uma entrevista com Lucio Flávio Pinto na qual ele fala sobre a carreira, a decisão de desacelerar e o que o futuro reserva.
Acompanhe a seguir:
O jornalista paraense Lucio Flávio Pinto, de 73 anos, natural de Santarém, município localizado na região oeste do Pará, publicou no último sábado, 8, no site Agenda Amazônica, escrito e editado por ele, que vai abandonar o jornalismo diário, depois de quase seis décadas dedicadas à profissão. A motivo da decisão é que Lucio se descobriu portador do Mal de Parkinson, em 2018, uma doença degenerativa e sem cura, e que começa a atingir a cognição do jornalista.
Em sua despedida, sob o título “Perdão, leitores”, Lucio escreveu “Fui alertado pelos médicos: na sua progressão, o Parkinson poderia começar a atingir a minha cognição; e eu seria abalado. Esse dia chegou. Mesmo lendo e relendo o extrato de um contrato, que motivou uma nota, já cancelada, voluntariamente, li errado e só percebi o erro neste momento. Acordei subitamente, assustado, já com a constatação do erro crasso que cometera por uma leitura prejudicada”, esclareceu.
“Só cancelar a nota, como fiz, não é o suficiente. Depois de anos de convivência com a doença mental, este foi o primeiro erro desse tipo que cometi, depois de milhares de notas que escrevi neste blog já com o diagnóstico do Mal. Sob o choque da percepção, decidi encerrar a minha atividade jornalística pública diária. Não quero cometer um novo erro desse tipo, por redução ou, em algum momento, perda da capacidade cognitiva”, enfatizou.
Trajetória – Lúcio Flávio de Faria Pinto nasceu em 23 de setembro de 1949, filho de Iraci de Faria Pinto e Elias Ribeiro Pinto, que foi radialista, jornalista, comerciante e político. Aos 15 anos, Lucio passou a apresentar um programa de rádio, mas o chefe da 2ª Secção da 8ª Região Militar considerou o programa subversivo e o retirou do ar. Aos 16, já em Belém, trabalhou como repórter no jornal A Província do Pará, integrante dos Diários Associados, onde depois ocupou o cargo de secretário de redação.
Sobre a família, que sempre teve ligação com a imprensa, Lucio relembra “Por incrível que pareça, o meu pai influiu pouco sobre a opção que quatro dos seus sete filhos – uma única mulher – fizeram pelo jornalismo. Apenas eu, o mais velho entre os homens, tinha alguma informação sobre o passado dele. Por acaso, aos 16 anos, por curiosidade, em 1966, subi as escadas para conhecer a redação de A Província do Pará, no centro antigo de Belém. Eu circulava em frente à sede do jornal, indo de um sebo para uma livraria, na mesma rua. Foi por minha influência que meus irmãos me seguiram, a partir de 1971. Só alguns anos depois comecei a pesquisar sobre Elias Pinto jornalista. E foi muito bom saber o que ele fez em dois jornais que circulavam em Santarém. Um dos jornais era dele, no qual ele já defendia a emancipação do Tapajós como o Estado do Baixo-Amazonas”.
Mudança para a região sul – Em 1968, aos 18 anos, Lucio decidiu mudar-se de Belém para o Rio de Janeiro, onde trabalhou por pouco tempo no Correio da Manhã. Depois foi para São Paulo, atuando Diário de São Paulo, Diário da Noite, revista Veja, IstoÉ, Jornal da República, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, onde consolidou sua carreira, atuando como repórter entre os anos de 1971 e 1988. Ao mesmo tempo, trabalhou na imprensa alternativa, nos jornais Opinião e Movimento.
A experiência de trabalhar no Estadão traz ótimas lembranças ao jornalista. “A maior parte do capital de conhecimentos que acumulei, eu o formei ao longo dos 18 anos como repórter do Estadão, entre 1971 e 1989. O jornal sempre bancou as minhas viagens. Nunca rejeitou as minhas pautas. Sabia que eu voltaria com a matéria pautada e ela ocuparia um lugar de destaque no jornal. Além disso, um dos donos da empresa, Júlio Mesquita Neto, aprovou meu projeto de criar uma sucursal da Amazônia, com repórteres em todas as capitais, coordenador por Belém, para fazer uma cobertura de melhor qualidade, como fizemos, até estourar uma crise no jornal, que colocou um fim na experiência daquela que foi a primeira sucursal verdadeiramente amazônica da imprensa. Como o rei Momo, primeira e única”, aponta.
Faculdade – Em 1973, formou-se em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo, chegou a iniciar sua pós-graduação na USP, mas retornou a Belém para montar uma rede de sucursais do Estadão na Amazônia.
Volta a Belém – Em Belém, em 1975, editou o suplemento alternativo Bandeira 3, aos moldes do antológico Pasquim. Lucio foi também professor visitante entre 1981 e 1982 do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA e do curso de jornalismo no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará, até a metade da década de 1990. Entre 1983 e 1984, foi também professor visitante do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida em Gainesville, Estados Unidos.
Jornal Pessoal – Trabalhou em O Liberal, na empresa das Organizações Romulo Maiorana – ORM, e quando se demitiu de O Liberal, fundou o Jornal Pessoal, em 1987.
Sobre a experiência com o Jornal Pessoal, Lucio destaca “O jornal durou 32 anos, com três interrupções menores, que não devem lhe ter tirado nem dois anos. Jornal escrito por uma única pessoa, com as ilustrações e a diagramação do meu irmão, o Luís Pinto, que não aceitava publicidade, vivia da venda avulsa, tinha tiragem de 2 mil exemplares, vendendo em bancas e livrarias, me causou 34 processos judiciais, propostos por pessoas poderosas, mas jamais foi desmentido. Firmou-se como referência da história contemporânea”, conta, orgulhoso.
Amazônia – Fazer jornalismo na Amazônia foi muito marcante para Lucio Flávio. “Se alguma coisa foi marcante na minha trajetória foi a oportunidade que tive de percorrer intensamente a Amazônia, entre 1966 e 2002. Em quase todos os lugares nos quais houve algum episódio importante da história da Amazônia nesse período eu estive. Vi os acontecimentos com meus próprios olhos. Esse conhecimento foi decisivo para me proporcionar uma visão tanto global – o que inclui fatos externos – como detalhada, factual e personalizada, com fontes em todos os Estados da região”.
“Sempre me senti como um correspondente de guerra ao atuar nas frentes pioneiras na Amazônia, que são extremamente violentas. Além disso, o repórter também costuma estar muito próximo dos personagens que critica ou denuncia. Pode sofrer violência mais frequentemente”.
“Hoje, a insegurança dos jornalistas é visível e estou certo de que, se fosse repetir o que fiz entre 1970 e 1990, não estaria vivo”, avalia
Lucio Flávio é autor de 21 livros individuais publicados, todos sobre a Amazônia.
Prêmios – Ao longo da carreira, Lucio colecionou premiações. São dele quatro prêmio Esso. “Todas as [premiações] que recebi foram importantes para mim, sobretudo porque foram, em geral, inscritas por outras pessoas e não por mim, que desisti delas depois das primeiras iniciativas. Foi assim que recebi três premiações internacionais. Fui o primeiro não europeu premiado com a “Colombe d’Oro per la Pace”, a mais importante premiação da imprensa italiana; o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection, dos Estados Unidos; e como um dos 100 heróis do jornalismo pelos Jornalistas Sem Fronteiras, de Paris”, relembra.
Doença – Em 2018, Lucio recebeu o diagnóstico do Mal de Parkinson, depois de ele apresentar sintomas anteriormente. “Foi um golpe duro saber que eu estava com uma doença degenerativa e sem cura. De imediato, quis desistir e me retirar da vida pública para tentar ter uma vida mais tranquila, retardando o avanço da doença. Mas logo estava de novo na linha de frente”, conta.
A decisão de parar com o jornalismo diário, que foi, de pronto, recomendado pelos médicos, só viria cinco anos depois.
Futuro – Sobre o que vai acontecer, de agora em diante, Lucio já tem ideias definidas. “O blog será dedicado, a partir de agora, à divulgação do que já escrevi e à imensa quantidade de documentos do meu arquivo, que possam ter utilidade pública. Além de prosseguir no tema mais relevante neste contexto que é a Cabanagem [revolta popular e social que ocorreu na então Província do Grão-Pará entre 1835 e 1840]”.
“Continuarei a acompanhar o dia a dia do Pará, da Amazônia, do Brasil e do mundo. Agora, como espectador, um espectador ainda comprometido com o meu tempo, mesmo que este já não seja exatamente meu”.
“Tentei várias vezes sair do tiroteio diário. Ele não é causado apenas pela desgastante vigilância diária para saber o que está acontecendo e o que significa. Há também a reação dos que são contrariados e me atacam de várias maneiras, tentando me fazer desistir. Agora a minha condição física ficou pior e tenho que sair do front. Mas espero continuar a contribuir, na retaguarda, para o entendimento do drama da Amazônia, que nunca se atenuou”, explicou.
Lucio não lamenta o passado e diz que “o que está feito está também acabado” e se pudesse mudar alguma coisa, evitaria ou corrigiria alguns erros, “mas tudo coisa secundária”. “No mais, repetiria a essência do que fiz: um jornalismo independente, crítico e baseado em matéria prima que mais se aproxima da verdade”.
Não à aposentadoria – Lucio Flávio não considera essa parada forçada pela doença como uma aposentadoria. “Provavelmente, só a morte ou – o que passou a me preocupar mais intensamente agora – a invalidez física e/ou mental me aposentará”.
No mais, ele vai tentar estar, cada vez mais, ficar perto da imensa biblioteca que construiu nesses mais de meio século de jornalismo e literatura. “Eu jamais darei conta de todos os livros que possuo. Mas colocá-los na minha companhia foi uma das maiores realizações da minha vida. Espero que continuem a ser meus queridos companheiros de viagem”.
Lucio encerrou assim o texto de despedida do jornalismo diário: “Muito obrigado a todos os meus leitores, de acordo ou em divergência comigo, sem os quais eu não estaria aqui, com a maior gratidão que há em mim. Espero que este blog e os demais, que procurarei continuar a alimentar, ainda mereça a sua visita, para mim sempre honrosa, estimulante e reconfortadora. E la nave va. Porque navegar é preciso”.
Lucio continua as postagens no site: https://lucioflaviopinto.wordpress.com/ e no perfil no Instagram https://www.instagram.com/lucioflaviopintoonline/