A memória (seletiva) da TV Liberal
O jornalista paraense Edvan Feitosa, que mora e trabalha na cidade de Bruges, na Bélgica, mandou um relato sobre a memória seletiva que observou nas homenagens que a TV Liberal fez aos seus colaboradores pelos 45 anos da emissora, celebrados em 2021.
Leia a seguir:
“A memória da TV Liberal, em Belém do Pará, sofre lapsos ainda precoces para uma emissora de apenas 45 anos de história. Ou esses lapsos tratam-se do que se pode chamar de memória seletiva. Isso talvez explique que, nas datas festivas significativas da emissora, como o jubileu de prata, os 30 anos e os 40 anos, as diversas retrospectivas se esquecem de citar meu nome como o idealizador, produtor executivo, roteirista e diretor, dos dois únicos projetos internacionais da emissora: “Círios em Portugal – As Origens da Devoção” (1998) e “Uma Peregrinação à Terra Santa” (1999).
Em 2001, deixei a emissora depois de quase 10 anos como editor-assistente dos telejornais, editor substituto do núcleo da Rede Globo, produtor de conteúdo especial e diretor de pelo menos cinco transmissões do Círio de Nazaré. Costumava dizer que, nesses 10 anos, meus colegas e eu bordávamos o manto eletrônico da Santa – expressão essa citada nos trabalhos acadêmicos de fôlego sobre a cobertura televisiva do Círio: a dissertação de mestrado e a tese de doutorado da professora Regina Alves, uma das nossas mestras, tanto na UFPA quanto nas redações do grupo Liberal. E o fiz com muita satisfação, seguindo os passos de outro mestre, Afonso Klautau, diretor de jornalismo que me convidou, em 1991, a integrar a equipe, já como editor, vindo da verdadeira escola de telejornalismo àquela altura: a TV Cultura do Pará.
Os 25 anos da TV Liberal – Ainda no primeiro semestre de 2001, meu último ano na emissora da avenida Nazaré, fui entrevistado pelos colegas que produziam a edição de um livro-álbum comemorativo dos 25 anos da TV Liberal. Falamos sobre as transmissões ao vivo do Círio e dos dois projetos internacionais que tinha idealizado e realizado. Cedi várias fotos dos bastidores das gravações dos dois documentários e das várias reportagens especiais que fizemos em Portugal e Israel. Mas, antes do livro ser publicado, fui demitido numa “barca” – como se costumava a chamar o corte de empregados para redução de gastos.
Quando o livro foi lançado, eu estava na Califórnia e fui surpreendido com um e-mail solidário e indignado de uma colega da emissora e amiga de longa data: “Edvan, eles usam as tuas fotos, sem dar crédito e simplesmente nem te citam no tal livro. Como puderam fazer isso?” Naquele tempo, atribuí a seleção excludente pelo fato de eu ter tido uma atuação contundente, junto com alguns colegas corajosos, como Vianey Bentes, contra as práticas editoriais nada jornalísticas da então direção da redação. Práticas essas, diga-se de passagem, que levaram a Rede Globo a assumir o controle do jornalismo da TV Liberal, alguns meses depois – numa espécie de intervenção. Pelo que sei, desde então e até hoje, o diretor de jornalismo local em Belém, se não é nomeado pela Globo, é alguém enfaticamente indicado. E até o repórter “da rede” é um jornalista de fora dos quadros locais.
Em junho passado, pensei que os lapsos precoces na memória da TV Liberal poderiam ser, enfim corrigidos. E até pensei que, passados exatos 20 anos da minha saída da TV, a memória seletiva poderia incluir-me na história oficial da emissora. Recebi convite de um jovem jornalista da TV Liberal para fazer um curto depoimento em vídeo sobre os fatos marcantes nos 45 anos da emissora. Soube que meu nome tinha sido uma sugestão de alguém “das antigas”. Gravei o depoimento citando o uso da música popular não-religiosa nas transmissões da procissão do Círio de Nazaré e, claro, os dois trabalhos internacionais. Alguns meses depois, recebi o vídeo editado no qual minha fala se resume ao aspecto musical das transmissões e nada, simplesmente nada, sobre os documentários e reportagens especiais em Portugal e Israel.
Exclusão inesperada – Como não moro no Brasil já há quase 15 anos, acabo sabendo dessa exclusão por colegas, amigos e familiares – gente que acompanhou de perto ou de longe o processo que foi fazer esses dois projetos internacionais. Sempre me perguntam nessas ocasiões retrospectivas: por que tu não és ouvido quando se fala dessas tuas produções em Portugal e Israel? Foi assim durante a veiculação de vídeos e materiais comemorativos dos 30, 35, 40 e agora dos 45 anos da emissora. Nada contra que ouçam Carla Eluan e Layse Santos, duas profissionais brilhantes, colegas queridas, que foram os rostos e pessoas fundamentais na realização dos dois projetos – assim como o saudoso Gouvea Júnior, o cameraman dos sonhos, e o mago Benedito Barbosa, editor de imagens 10 estrelas, que comigo fez a montagem dos dois documentários e mais de oito reportagens especiais, noite adentro em longas semanas de árduo trabalho artesanal – vale lembrar que eram tempos em que a tecnologia de vídeo digital ainda era rudimentar em comparação à essa que os garotos dispõem hoje nos seus smartphones.
Projetos internacionais – Nos dois projetos internacionais, boa parte da cobertura dos custos de produção foi conseguida por mim, por meio de propostas de apoio prontamente acolhidas pelo então cônsul de Portugal em Belém e pelo Ministério Israelense do Turismo. O primeiro conseguiu que tivéssemos apoio das prefeituras das cidades portuguesas de Nazaré, Santarém, Óbidos e Mafra. Já dos israelenses, lembro-me de estar em férias na Capadócia, Turquia, em junho de 1999, quando fui localizado pelo escritório do Ministério em Madrid, que se ocupava da América Latina e para onde meu pedido à embaixada israelense em Brasília tinha sido encaminhado. Queriam acertar o que poderiam fazer para apoiar a realização do documentário. Acabaram nos disponibilizando transporte interno por van com motorista, guia e intérprete, além de custear toda a hospedagem em Israel.
Uma amiga, também jornalista paraense, acredita que boa parte desses lapsos se deve à renovação constante da redação na avenida Nazaré: “Ah!, lá está cheio de ‘xovens’ que não conhecem nada da história de onde trabalham; eram ainda crianças no tempo dessas produções”. Pode ser, mas a síndrome da memória seletiva faz as cabeças jovens ou mais maduras da TV Liberal esquecerem que são fatos que ficaram registrados para sempre e que são facilmente comprovados: basta olhar os créditos dos documentários e das reportagens especiais, como as fotos aqui postadas.
Lapsos de memória – Sempre fui um jornalista dos bastidores. “Eu quero é que vocês brilhem” – era o que eu costumava dizer, bem-humorado, às dezenas de colegas repórteres e apresentadores com quem tive o privilégio de trabalhar, tanto na TV Liberal quanto na Funtelpa, onde fui diretor da TV Cultura nos últimos quatro anos, antes de me mudar para a Europa.
Agora, porém, penso que é hora de ajudar a sanar esses lapsos de memória. Talvez pense isso porque os ecos de Belém do Pará sobre o vídeo do meu depoimento chegaram a mim nas semanas que estava de férias em Creta e na Ática, onde viveram Platão e Aristóteles. E me veio à cabeça o que os dois concluíram sobre a verdade: essa seria a “exata correspondência de um enunciado com a realidade da coisa por ele proferida”.
1 Comment
O depoimento-denúncia de Edvan Coutinho sobre a memória seletiva da TV Liberal corrobora minha experiência de também haver sido excluída no registro da sua curta história de existência.
Morando há quase 21anos na Austrália em uma das minhas idas à Belém me deparei com um livro organizado e editado pela referida emissora para celebrar seus 25 ou 30 anos de fundação.
Fiquei surpresa e chocada ao constatar haver sido excluída no registro da primeira equipe de noticiarista e âncoras dos telejornais da emissora.
Vera Cascais e eu éramos as duas únicas mulheres âncoras onde alternavamos com Francisco César, Alex Fiuza, Roberto Sisson e Edson Matoso.
O diretor de jornalismo era o Lindomar Bahia.
Fui selecionada para ser âncora do Jornal das 7.
Era um trabalho artesanal.
Chegava bem cedo na redação para decifrar as notícias escritas e corrigidas com canetas.
Limpava e enxugava o texto cronometrando as notícias com o tempo de cada bloco.
Era ao vivo e não havia teleprompter.
Procurava decorar pelo menos a abertura de cada uma, na época a orientação era para sermos filmados em plano fechado e não podia aparecer as pautas de texto à nossa frente.
Após ensaiar me dirigia ao camarim para ser maquiada pelo Juan, trocar de roupa e seguir direto para o estúdio.
O registro da emissora deve guardar como parte da sua história aqueles que colaboraram nos seus primeiros anos.
Mesmo no caso de não haver tal registro não se trata de um passado assim tão distante que não possa ser levantado.
No citado livro constava o nome de todos, exceto o meu.
Requer seriedade e imparcialidade ao se escrever história, assim como fazer jornalismo.
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